domingo, 14 de março de 2010

A mão e a luva

Machado de Assis em A mão e a luva apresenta características que tornam o romance o intermeio do romantismo e realismo. Ele nos apresenta um personagem extremamente romântico, Estevão, e em contrapartida, nos traz Guiomar e Luís Alves que se apresentam bem realistas. Nessa perspectiva, falar-se-á sobre dois traços da obra que o tornam um romance diferente dos romances românticos.

A começar pela narração, já se percebe alguma diferença. O narrador não se atém tanto à descrição do espaço, nem tampouco a descrição física do personagem, pois fazer o leitor conhecer os personagens através de suas características psicológicas é uma característica do realismo. É tanto que a introdução do romance se dá com um diálogo entre Estêvão e Luis Alves, no qual já percebemos o sentimentalismo aguçado de Estêvão.

- Mas que pretendes fazer agora?

- Morrer.

- Morrer? Que idéia! Deixa-te disso, Estêvão. Não se morre por tão pouco.

- Morre-se. Quem não padece estas dores não as pode avaliar. O golpe foi profundo e meu coração é pusilânime (...).


O narrador, então, não se coloca mais em constante oposição ao seu interlocutor, mas passa a narrativa buscando sua cumplicidade e tentando entabular acordos, ele conduz o leitor pelo espaço ficcional (Guimarães, p.139) diferente do narrador romântico que tenta estreitar laços com o leitor para fazê-lo conceber a leitura da sua forma, sob a sua tutela.

Dirá a leitora que o sobrinho não merecia tanto zelo nem tão pertinaz esperança, e terá razão; mas os olhos da baronesa não são os da leitora (...).

Outro traço pertinente a ser notado é a mudança de paradigma de herói e heroína. Estes, no romantismo, se unem por um amor puro e são seres plenos de virtude e bondade que luta por alguma força do mal que impede sua união. Em A mão e a luva, tem-se Guiomar, uma mulher forte, ambiciosa e calculista, que tem seu amor disputado por Estêvão, Jorge e Luís Alves, ficando esta com o último, pois para ela o primeiro seria sentimental e sem apego às coisas materiais, o segundo dar-lhe-ia uma vida vegetativa. Luís Alves não, este era tão ambicioso quanto ela, almejava crescer em sua carreira política, não era sentimental demais, nem interesseiro puramente, estava sob medida para uma mulher como Guiomar que nasceu pobre, mas alcançou a riqueza através da madrinha, por isso tornou-se uma mulher de anseios ambiciosos.

A obra, se assim pode dizer, é neutra em relação à dicotomia bem/mal, pois não se pôde perceber em nenhum dos personagens uma tendência ao mal, mesmo quando se trata de Estêvão e Mrs. Oswald. O primeiro, apesar de ser amigo de Estêvão, ficou com Guiomar, mas não se trata de uma ação negativa, apenas trata-se de uma questão, primeiramente, do destino e depois de afinidade, não houve uma manipulação de Luís na tentativa de prejudicar o amigo, até mesmo porque Guiomar não o queria, por se mostrar fraco. A segunda, apesar de tentar manipular a situação para que Guiomar casasse com Jorge, não fez como tentativa de alcançar um objetivo próprio, mas pensando na Baronesa, que se mostrava feliz com a possibilidade.

Machado de Assis, em seu A mão e a luva, busca retratar não a gente humilde de acordo com as produções de sua época que eram de cunho regional, mas retratou o cotidiano de um povo urbano, mostrando os tipos psicológicos e suas reações diante do amor.

Memórias de um Sargento de Milícias: uma narrativa de costumes.

Como todo romance de costume, Memórias de um Sargento de Milícias é uma narrativa voltada mais aos acontecimentos que aos personagens. Estes não passam de tipos sociais e é justamente neste ponto que se encontra a consequência desse enredo acelerado. À medida que a narrativa se concentra nos fatos, dedica-se menos a caracterização dos personagens que, segundo Antônio Cândido, são “rasos psicologicamente, desprovidos de surpresas, avaliados pelo autor de uma vez por todas desde os primeiros golpes de vista”, pois são apresentados por uma descrição geral, comum ao grupo.
A obra narra fatos do cotidiano da classe de homens livres do “tempo do rei”, que não são nem escravos, nem aristocratas, mas gente simples envolvida em fatos que despertam o riso no leitor. A própria narração, inicialmente, é apresentada como uma “contação de causos”, se assim pode dizer - “Era no tempo do rei” (Almeida, p.7). Esses casos envolvem os personagens que não sofrem nenhuma mudança no decorrer da história e permanecem com a mesma caracterização inicial.
Tomando-se como objeto de análise o próprio protagonista da obra, Leonardo (o filho), percebe-se tal característica. O narrador apresenta-o como “travesso, esperto, malcriado, simpático, ágil” com “a esperteza, que muitas vezes redunda em desastre” (Cândido) e dessa forma ele permanece até o final da obra. Nem a desventura sofrida com a dissolução da família, o que terminou em seu abandono pelos pais, nem o tratamento que os vizinhos lhes dispensavam, nem os amores fizeram de Leonardo, o menino nascido de uma “pisadela e de um beliscão”, um personagem esférico.
Como um “anti-herói”, um desafortunado, o protagonista passou por momentos delicados em sua vida, como disse a comadre “não nasceu em bom dia”. Foi lançado, literalmente, fora de casa por um chute do pai. Demorou a adquirir a leitura, não seguiu carreira clerical, como desejava seu padrinho, nem ao menos conseguiu se destacar na carreira militar (não passou da patente de soldado), casou-se com uma viúva, coisa atípica para um protagonista de romance. O que se pode perceber é que o fator positivo na vida de Leonardo foi o seu padrinho. Sem este, mesmo com sua esperteza, não teria alcançado o “final feliz”.
Manoel Antônio de Almeida, em MSM, traz inovações que o coloca em destaque no Romantismo. Além de retratar o dia-a-dia de uma classe popular, ao contrário dos demais que tratavam da aristocracia, ele não se preocupou em criar personagens complexos. Para ele, os fatos são importantes e definem os personagens, por isso tanto movimento destes de um espaço a outro no enredo.


sábado, 13 de março de 2010

A relação narrador-obra-leitor em "Memórias de um Sargento de Milícias".

É sabido que no período correspondente ao estilo romântico, século XVIII, a prosa é difundida em forma de folhetim, ou seja, o leitor não tinha acesso à obra na íntegra em uma única oportunidade, mas de forma fragmentada. Sabe-se, também, que o público leitor deste período era formado, em sua maioria, por mulheres. Isto porque a maioria da população não tinha hábito, nem tempo, nem dinheiro para dedicar à literatura. Dessa forma, apenas as mulheres, principalmente as burguesas, foram consumidoras, durante muito tempo, dos folhetins e, conseqüentemente, do romance - produções criadas para atender aos anseios das leitoras, ou seja, eram narrativas que fugiam ao real, que retratavam uma realidade superior, transcendente.

Em vista disso, percebe-se uma característica marcante, talvez uma necessidade, do narrador deste estilo de época: ele é aquele que constrói e conduz o leitor com chamadas, de forma a situá-lo na leitura sob sua tutela. Na obra Memórias de um sargento de milícias, Manoel Antônio de Almeida não faz diferente - embora se trate de uma narrativa pícara, cujo herói foge ao modelo do herói romântico idealizado pelas mulheres - ele nos apresenta um narrador que tanto interage, quanto procura estreitar laços com o leitor, como mostram os trechos que seguem:

Vamos fazer o leitor tomar conhecimento com um desses ativos militares, que entra também na nossa história (p.30)

Cumpre-nos agora dizer alguma coisa a respeito de uma personagem que representará no correr desta história um importante papel, e que o leitor apenas conhece, porque nela tocamos de passagem no primeiro capítulo: é a comadre, a parteira... (p.27)

Como se pôde notar, no trecho citado acima, ao falar na importância da personagem - a parteira - ele induz o leitor a concebê-la, também, como um papel importante para a história. Talvez para o leitor, sem a influência do narrador, a esse personagem não fosse dispensada tanta atenção. Nesse comportamento do narrador - que segue a evolução do folhetim para o romance – pode-se perceber a intenção do autor, na figura do narrador, em fazer com que o leitor interpretasse a obra da forma que ele desejasse.